A Teoria de Tradução de Lutero


















No que se refere à tradução, o Renascimento é responsável pela formação das
bases da tradutologia moderna, e, não por coincidência, pela produção das primeiras
reflexões de maior envergadura sobre a arte da tradução: as mudanças que então
aconteceram na Europa Ocidental incluem também a concepção e prática da tradução.
Estas reflexões constituem, pois, as fontes primárias para a investigação da história da
tradutologia moderna e da teoria tradutológica renascentista. Entre as mais
representativas daquele período histórico europeu, se encontram as reflexões
tradutórias de Lutero, ao lado de outras como as de Leonardo Bruni, Luis Vives,
Étienne Dolet, Fausto da Longiano e George Chapman.

Da ingente obra do escritor alemão mais prolífico do século XVI, além de
vários comentários em suas Tischreden, dois textos básicos expõem o pensamento de
Martinho Lutero (em alemão, Martin Luther, 1483-1546) sobre a tradução: Sendbrief
vom Dolmetschen (1530) e Summarien über die Psalmen und Ursache des
Dolmetschens (1531). Estes textos, no entanto, apresentam não apenas sua concepção
de tradução mas também alguns pontos centrais de sua teologia, ou melhor, os
princípios diretores de sua tradução são oferecidos pela teologia. Tanto sua concepção
lingüística como tradutológica se subordinam à sua concepção religiosa, ou, dito de
outra maneira, a tradução da Bíblia só tem sentido dentro de uma perspectiva
teológica (recordemos aqui os três princípios básicos da Reforma protestante: 1) a
Bíblia como única regra, 2) só a fé salva, e 3) a universalidade do sacerdócio que faz
com que cada homem possa e deva ler a Bíblia e interpretá-la).

A ‘teorização’ de Lutero sobre a tradução não se encontra de forma didática
ou preceptiva em nenhum dos textos em que trata da questão; sua intenção primeira
com a publicação do Sendbrief – seu principal texto sobre a tradução – não era
escrever um ‘manual’ sobre como traduzir, mas justificar o processo de sua tradução
do Novo Testamento. Por isso não é de estranhar que Lutero apresente sua concepção
e prática da tradução não como um teórico secular o faria, mas como um homem de
fé, e, ao mesmo tempo em que esclarece seu procedimento tradutório vai
apresentando e defendendo alguns elementos fundamentais de sua teologia, como 
oda ‘justificação pela fé’ (sola-allein), em Sendbrief. É interessante observar neste
texto como Lutero começa a argumentação sobre sua tradução com o exemplo de
sola-allein, dentro de um princípio de tradução lingüístico-retórico, e como termina
sua dissertação com o mesmo exemplo, porém agora dentro do princípio da
hermenêutica teológica. Isso não é casual, nem apenas um recurso retórico e lógicoformal,
mas talvez principalmente uma reiteração da doutrina básica do luteranismo.

Em seus escritos ‘tradutológicos’, Lutero trata exclusivamente da tradução de
textos sagrados; na prática traduziu também fábulas de Esopo. Apesar disso, sua
concepção pode estender-se a todo tipo de textos dada a universalidade e o valor de
seus raciocínios. A grande diferença com respeito aos seus antecessores e o
revolucionário do pensamento do Reformador é a abordagem de tipo comunicativo e
suas implicações linguísticas. Lutero advoga por uma tradução retórica (proprietas,
perspicuitas, consuetudo…) e de estilo popular, não com fins estéticos mas
comunicativos – a compreensibilidade do texto e o leitor –, salvaguardando sempre a
mensagem divina. Lutero considerava indispensável o conhecimento das línguas e
literaturas da Antiguidade para a prática de uma verdadeira teologia (Bocquet,
2000:50) e para o manejo da língua alemã: suas concepções linguístico-filosóficas e
teológicas se fundamentam nos progressos filológicos do Humanismo (Wolf,
1980:65). E nisso também se diferencia de anteriores tradutores da Bíblia, não só por
haver produzido um texto realmente legível, mas também por trabalhar sobre os
originais hebraico e grego (o que é uma característica humanista).

Numa de suas Tischreden (1532: II, nº 2771 a-b), define assim a tradução:
Vere transferre est per aliam linguam dictum applicare suae linguae (A verdadeira
tradução é a adaptação do que foi dito numa língua estrangeira à sua própria língua).
O Reformador concedia grande importância ao meio cultural dos destinatários, por
isso traduzia adaptando o texto à mentalidade e ao espírito dos homens de seu tempo a
fim de dar a compreender as realidades históricas, culturais e sociais relatadas na
Bíblia e próprias de uma sociedade distanciada no tempo e no espaço
(Delisle/Woodsworth,1995:59). As diretrizes básicas de sua teoria da tradução são a
hermenêutica teológica e a enunciação melhor possível do conteúdo na língua do
receptor. Na prática, observa-se o predomínio de uma tradução que privilegia o texto
na língua de chegada, mas que também admite estrangeirismos se a formulação do
original expressa melhor o conteúdo da mensagem.



Bibliografia:

FURLAN, Mauri. “A teoria de tradução de Lutero”. 2004. In: Annete Endruschat & Axel Schönberger
(orgs.). Übersetzung und Übersetzen aus dem und ins Portugiesische. Frankfurt am Main:
Domus Editoria Europaea. (p. 11-21)

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